Resenha - "O olhar de Miguilim"

Você provavelmente já ouviu falar de Guimarães Rosa. O escritor mineiro é um dos maiores nomes da literatura brasileira. Uma de suas obras de maior sucesso é a novela "Campo Geral", publicada pela primeira vez em 1954, mas conhecida e admirada até hoje!
A professora e pesquisadora Cláudia Campos Soares fez uma análise desta obra tendo como foco a visão do protagonista, o menino Miguilim, e a publicou em 2007 ("O olhar de Miguilim").
Precisei escrever uma resenha desse texto para um trabalho da faculdade e resolvi compartilhá-la com vocês, aí vai!
Imagem retirada de: <https://docero.com.br/doc/xve5cv> acesso em 29 de Junho de 2020


   Guimarães Rosa, um autor muito capacitado e interessado em questões regionalistas, encontrou certa dificuldade até achar a forma mais adequada para escrever suas narrativas. Após diferentes estratégias e tentativas, o mineiro, enfim, percebeu que o discurso indireto livre, uma narração simples e recheada de falas de personagens, seria a o ideal e assim foi feito em “Campo Geral” (1956), obra que lhe rendeu muitas críticas positivas e por cuja autoria é exaltado até hoje.
   Em “O olhar de Miguilim” (2007), Cláudia Campos Soares levou o leitor de volta a diversos episódios de “Campo Geral”, fazendo-o revivê-los sob outra perspectiva. Apesar da falta de fluidez notada no início do texto, sua leitura se faz bastante satisfatória devido à forma como a autora foi capaz de apresentar ao leitor como o olhar de Miguilim é, ao mesmo tempo, limitado e amplo.
   Soares demonstra no livro de Guimarães o conceito da “visão com”, proposto por Pouillon, ou seja, a estória é narrada a partir do ponto de vista de uma personagem específica, seus pensamentos são revelados e o  narrador acaba sendo, obviamente, parcial. Mesmo sendo narrada em terceira pessoa, o leitor só apreende os fatos da estória na medida em que Miguilim, um menino míope que tem entre 7 e 8 anos (protagonista da obra), os vivencia e da forma como os enxerga.
   A estória de um garoto compassivo e observador que vive com a família em um lugar chamado Mutum e tenta ser “bom o suficiente” para os adultos é, incontestavelmente, bastante cativante e isso se dá, como aponta Cláudia Campos Soares, por uma série de estratégias adotadas pelo  escritor. Uma delas é a linguagem sem muitos adornos, mas simples, notoriamente infantil, recheada de apelidos e expressões; outra, como, mais uma vez, demonstra a pesquisadora com base em um conceito de Pouillon, é a “compreensão simpática”, despertada no leitor por meio dos hipocorísticos dos quais Miguilim se utiliza, bem como da representação de seu sofrimento. Por fim, o modo como o menino se refere aos familiares (pai, tio, vó, mãe) traz um ar de intimidade que provoca no leitor a imersão na obra e a emoção junto às experiências do pequeno.
   O ponto de vista do leitor é construído a partir de uma visão imperfeita (a de uma criança míope), então não se tem acesso a tudo o que acontece no período de tempo retratado, principalmente ao que se dá em meio aos adultos. Deste modo, alguns eventos relevantes acabam por passar despercebidos, eventos estes que são cruciais para o rumo que as vidas de Miguilim e seus próximos tomam.
   Ainda assim, como observa Soares, estes episódios aos quais não temos total acesso não são nada que prejudique a leitura da obra e o que nos cabe saber (quando não é claramente revelado) é perceptível através dos familiares do protagonista ou é facilmente inferido com base no contexto.
   Nhanina, por exemplo, é a mãe do garoto. Sabe-se que ela é letrada e carinhosa, almeja uma vida além do cárcere que é, para ela, o Mutum. Essa tristeza que sentia de não poder chegar além daquilo pode ter se transformado em carência e somos levados a entender que a mulher teve algumas relações extraconjugais. Essas possíveis traições, como nos revela a analista, são a causa de diversas intrigas na família: uma briga entre ela e seu marido, a expulsão de “tio Terez” do Mutum e uma bronca de “vó Izidra”. Neste ponto da narrativa, como bem destaca Soares, é feita menção à “vó Benvinda” (mãe de Nhanina), que era prostituta, assim é dado a entender que Nhanina teria “herdado o mau hábito da mãe”. Dito, sábio irmão caçula de Miguilim, pensa, ainda, que a tempestade era castigo de Deus para a mãe e o tio, sendo esta mais uma referência à possível traição. É retratada, também, a má relação do menino com seu pai, que era iletrado, bastante rígido e pouco sonhador, mas sempre enfurecido com a situação financeira apertada da família. Em um dos castigos aplicados por seu pai, Miguilim chega a querer matá-lo e começa a rir em vez de chorar enquanto apanhava.
   É interessante a maneira como Cláudia Soares reúne momentos distintos do livro de Guimarães de modo a comprovar os temas que propõe (a má relação de Miguilim com seu pai, as traições de sua mãe, seu apreço pelos animais, seu perfil curioso e observador...).
   Fica evidente em “Campo Geral” que o protagonista passa por uma transformação, principalmente após a morte de seu irmão favorito, Dito. Como destaca a autora de “O olhar de Miguilim”, Miguilim parece passar a crer que a vida não tem remédio, amargura-se. Percebe nos adultos o prazer no que é mau (os homens que se compraziam na caça, a avó que, segundo o que entendia, gostava de judiar de sua mãe dando broncas) e isso o indigna muito.
   Muito bem destaca a autora que o pequeno Miguilim sempre apreciava aqueles que contavam boas histórias e tinham imaginação fértil: sua mãe, seu amigo Grivo, Luisaltino (mais uma vez, Campos Soares reúne diferentes excertos da obra para comprovar as observações que apresenta); não se satisfazia com respostas superficiais e amava refletir. Não se pode deixar de ressaltar, como atentamente nota Cláudia Campos Soares, a empatia e o carinho que tinha para com os animais: sua cadela, seu gato, a joaninha que encontrou, os tatus que seu pai caçava junto aos amigos. Aqui destaco mais um fato muito relevante: João Guimarães Rosa revelou, em outro momento de sua vida, que se identificava com a personagem principal deste livro, que sofria com ela. Amava bons contadores de história e pensava muito acerca da vida e de suas possibilidades. Isso traz à obra um caráter ainda mais pessoal.
   Assim percebe-se como a autora foi, em “O olhar de Miguilim”, capaz de nos apresentar a genialidade de Guimarães e a forma como somos levados à parcialidade ao longo da leitura da novela, mas ainda assim temos uma visão panorâmica da obra (vemos além do olhar de Miguilim através dos relatos de seus familiares). Ela, ainda, resgata no leitor a emoção de outrora, aquela despertada pela leitura de "Campo Geral" em diversos momentos, principalmente ao final comovente do livro.
   É interessante, também, o fato de que a  articulista  remonta em mais de um momento ao longo de sua obra à relação existente entre João Guimarães Rosa e Miguilim, o que desperta ainda maior interesse no leitor e comprova a sensibilidade e a empatia existentes em ambos. Ao fim, pode-se concluir o que genialmente escreveu Cláudia Campos: “Miguilim nos mostra que ver bem também vem de dentro” (página 20), anuindo algo bem presente em seu trabalho: a demonstração de que um ponto de vista  limitado (o de um garotinho míope) não prejudica a compreensão da obra ou impede a conclusão de seu objetivo, mas é elemento crucial dentro do conjunto da incrível “Campo Geral”.

Por Samuel Reis.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Provas e tipos

Faixa etária

A estrelinha - Conto