Ensaio - Preconceito Linguístico
Ouve-se bastante sobre o tal do preconceito linguístico, menosprezo motivado pelo sotaque, pelo idioleto e até pela proveniência natal. Neste ensaio, gênero literário de viés menos formal, mas não desembasado, falo um pouco sobre o tema. Vale a pena ler e refletir.
Não existe preconceito linguístico. Este assunto tem sido pauta recorrente nos ambientes acadêmico e escolar, além de figurar notícias na televisão e na internet. Preconceito linguístico é uma maneira de discriminação social motivada pela forma como uma pessoa fala: quanto mais distante da norma padrão, mais julgada será. É, portanto, mais um preconceito para se juntar aos tantos que já existem.
Àqueles que vivem no meio acadêmico da educação é quase impossível pensar sobre preconceito linguístico sem se lembrar de Marcos Bagno, autor do famoso livro que leva o nome do presente tema. Seu lançamento foi, sem dúvidas, um marco extremamente relevante para as universidades educacionais de todo o Brasil, já que, após ele, esse conteúdo passou a fazer parte da base curricular de diversos cursos, a ser estudado mais a fundo e a ser conhecido por muito mais gente.
O preconceito linguístico pode se dar de duas formas: o regional, que é o que menospreza os falantes cujo sotaque é característico das regiões menos privilegiadas social e economicamente (no Brasil, por exemplo, nordestinos e nortistas são os mais afetados por isto tendo em vista que sul e sudeste, principalmente, são as regiões que tendem a tentar reter a si cultura, mídia, economia etc.); e o socioeconômico, que subjuga aqueles menos abastados socialmente e, muito devido a isso, têm menor conhecimento da norma padrão da língua.
No Brasil, há, sim, dois sotaques privilegiados: o carioca e o paulistano, ambos oriundos da região sudeste do país. Falantes que pronunciam o “R” tepe ou uvular ao final da sílaba, ditongam vogais e falam o “S” fricativo costumam ser quase unanimidade nos meios de comunicação. Poucos são os repórteres, radialistas e apresentadores que pronunciam todas as vogais como tônicas e se valem de expressões fora do “padrão televisivo” (seriam estes os mineiros, paulistas, goianos, nortistas e nordestinos “da goma”).
O estudo da fonética e da fonologia nos permite compreender que todas estas variações da fala no que diz respeito à maneira como se pronuncia cada palavra são meramente diferenças na forma de articulação de cada fonema, são diferenças entoacionais e rítmicas. São diferenças. Não são erros, não são problemas, mas algo que não é igual em cada pessoa. Inclusive, se tudo e todos fossem iguais, a vida nem teria graça.
Se estudarmos o processo histórico de colonização de nosso país, perceberemos o motivo pelo qual muitas regiões têm sotaques e dialetos marcantes. Diversas expressões são provenientes das linguagens daqueles que chegaram para invadir, a forma de se dizer alguns fonemas também costuma ser reflexo de como os colonizadores o faziam.
Olhando, ainda, para o estudo da gramática perceberemos que a língua falada e a língua escrita possuem diversas distinções. Quando se escreve um texto, por exemplo, a gramática normativa não admite o uso de pronomes oblíquos no início de sentenças, mas o mesmo não acontece na língua falada. É completamente plausível que digamos algo como “Me esqueci de desligar o fogão!” em vez de “Esqueci-me de desligar o fogão!”. Como costuma dizer a professora doutora Cristina Bertioli, um bom falante da língua não é aquele que a usa formalmente em todas as situações, mas aquele que sabe adequar seu uso às diferentes necessidades do dia-a-dia. Brilhante! Imagine um grande conhecedor da norma culta da língua portuguesa conversando com os habitantes da Cracolândia, por exemplo, valendo-se da mais completa formalidade. De nada adiantaria, ele saberia falar “bonito” ou “certo”, mas não conseguiria se comunicar tendo em vista que a situação na qual estaria iria requerer um uso diferente da linguagem.
É comum ouvir, em meio aos estudos de linguagens, que a língua é um organismo vivo e esta frase é uma grande verdade facilmente comprovável. Constantemente, novas palavras são criadas, expressões provenientes de outros idiomas são incorporadas e isso confere à língua uma característica de constante mudança. Há alguns anos não se conhecia na língua portuguesa, por exemplo, o termo “crush”. Hoje em dia, entretanto, muitos brasileiros sabem da existência deste termo inglês e se utilizam dele em seu vocabulário, substituindo tradicionais termos, como “paquera”, que vem sendo dito cada vez menos e é assim que vários vocábulos caem no esquecimento ou até entram em desuso.
Não existe preconceito linguístico. Essa expressão pode, também, fazer referência à forma como falamos línguas estrangeiras. Trago aqui o conhecido episódio de uma brasileira, fã de Bon Jovi, que estava presente em um de seus shows e foi convidada a subir ao palco e cantar com ele. Quem acompanha o cantor conhece esse seu perfil carismático e carinhoso com os fãs, principalmente as mulheres. A mulher trocou palavras e afetos com o artista e se sentiu extasiada. Ao ser perguntada sobre o que o músico lhe disse, respondeu que não sabia, pois não entendera quase nada já que seu conhecimento da língua inglesa era muito básico. Devido a isso, a moça foi alvo de inúmeras críticas no mundo digital.
Alguém é obrigado a ser fluente em um idioma que não o seu nativo para merecer realizar um sonho? É inválido buscar a comunicação quando não se tem total domínio da língua? Falar com excelência o tão admirado “segundo idioma” faz uma pessoa melhor que a outra? Afirmo que a resposta é “não” para as três indagações. A possibilidade de comunicação independia, neste caso, do conhecimento da gramática normativa. A concretização de um sonho, neste caso, não estava condicionada ao fato de a mulher ser ou não uma falante fluente do inglês.
Antenor Nascentes, renomado escritor e estudioso da língua portuguesa, propôs, ainda no século passado, as polêmicas divisões do falar brasileiro. Ali, ele iniciava (mesmo que não soubesse) a oficialização do que conhecemos por “variação linguística”, que é um fenômeno natural que se dá pela alternância do uso da língua por diferentes pessoas em diferentes lugares. Este conceito engloba tanto a maneira como se pronunciam as palavras (sotaques) quanto o dialeto em geral (um dialeto é composto não só pelo sotaque, mas pelas diversas expressões características de seus falantes). Percebe-se, então, que o preconceito linguístico é mais uma fobia, mais um preconceito que se une à discriminação motivada por religião, por cor de pele, por classe social etc. Se pudéssemos renomear tal conceito, seria plausível batizá-lo de “variação-linguística-fobia”. Uma ignorância ou, para muitos, uma insatisfação com o que é diferente daquilo que é padronizado e que lhes confere status.
Não existe preconceito linguístico, já dizia Marcos Bagno, “o que existe é um profundo preconceito social que usa a forma de falar das pessoas como desculpa para excluí-las dos bens e dos direitos que deveriam caber a elas”.

Muito bom, Samuel!!! É necessário esse assunto!! Ser brasileiro implica em conviver com a diversidade, e é importante valorizá-la.
ResponderExcluir(Seu jeito de escrever é simples, preciso e prende a atenção.👏🏻👏🏻)
Excelente reflexão
ResponderExcluirPerfeito ha se todos tivessem esse olhar.
ResponderExcluirAdorei o texto, reflexão daora, nunca coloquei em palavras essa conclusão que vc faz no fim, mas é *exatamente* sobre isso, é só mais uma camada/ferramenta que incrementa desigualdades e preconceios ja existentes
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